Se a sociedade atual é marcada
por uma exacerbação do controle e da transparência normativa, e se é difícil
hoje pensarmos uma alternativa viável para fugir dessa condição, as obras
atuais de Sara Ramos trazem essa situação urgente de modo ao mesmo tempo direto
e sedutor. Porque há um fascínio em toda tragédia, há em nós, latente, uma curiosidade pela vida e pelo
drama alheio. Poder observar o que se passa com cada corpo de barro de Sara não
é só possível, como inevitável. Pois seus personagens, abandonados à própria
obsessão, estão ali, congelados em plena ação, e ao mesmo tempo, alheios à
observação e ao congelamento. Tornados cerâmica, não pulsam mais, mas é como se
vivessem, tamanha é a impressão de vida subjetiva de seus movimentos, tornados
poses.
Colocados em estruturas de
acrílico transparente, sem cor, cada um e todos parecem viver uma condição cada
vez mais presente na vida de todos nós: isolados em nossas pequenas solidões,
carecemos, por outro lado, de privacidade.Todos são vistos, mas não há
interação possível, separados que estão
por estruturas de acrílicos que nos lembram o apartamento em que vivemos, ou a
cela do presídio, ou o quarto do hospital e assim numa série longa e
assustadora.
O contraste dos materiais da
cerâmica e das caixas de acrílico opera uma disjunção fundamental nessas obras, onde a separação é a constante. Sobrevive por
outro lado, uma vontade de gesto subjetivo, uma aposta pela possibilidade do
humano no mundo.
A obra
atual de Sara Ramos é como um espelho,
sutil e perverso, da nossa própria condição.
Texto do crítico e curador Fernando Lindote
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Percurso de uma artista
(Texto autobiográfico)
Não me reconheço com qualquer outra
possibilidade a não ser esta. Nasci artista. Disso eu tenho certeza e
convicção. A arte sempre fez parte do meu corpo, dos meus desejos, dos mais
íntimos e primários sentimentos.
Desde criança, sempre me expressei através da
arte. Sou a quinta filha de um total de oito irmãos, sempre tive família
estruturada, pais atentos e amorosos. Vivi uma infância livre, solta nas
redondezas da minha casa, brincando nas ruas seguras de uma Florianópolis provinciana,
bela, tranqüila. Tardes de inverno escalando os pés de arvores frutíferas das
vizinhanças, verões ritmados aos sons dos tambores da escola de samba que
ensaiava a uma quadra da minha casa. Meu pai sempre amou música e este amor se estendeu
ao meu DNA. Música foi minha primeira e eterna paixão.
A segunda foi o desenho e tomou conta de mim. Desde
pequenina, meus cadernos eram preenchidos por poesias, letras de músicas e
muitos, inúmeros desenhos. Na escola fundamental, enquanto a professora
explanava o assunto, um olho e um ouvido prestavam atenção na mestra, o outro
olho, o outro ouvido e minha mão, como se recebesse uma entidade, fixavam esforços
e interesses nas linhas, espirais, rostos humanos, traços, árvores e tudo mais
que surgisse psicografados em cada momento inspirador. Ao final do ano, meus
cadernos estavam repletos de coisas e seres gerados pela minha imaginação de
menina e sequer uma folha em branco restava em minhas brochuras.
Outro grande amor que acompanhou a minha
infância foi o teatro. Já aos sete anos, escrevia, produzia e atuava em
pequenos shows que eu mesma dirigia. Contava com duas amigas e um irmão para
compor o elenco. Vendíamos os ingressos na vizinhança e o quintal da minha casa
se transformava num palco e diante dele se assentava uma platéia eclética e
atenta. Declamávamos poesias, cantávamos músicas e o Grand Finale era uma micro
peça teatral. Figurino e cenário caprichados, também idealizados por mim. O
palco sempre me encantou.
Eu não poderia mesmo ser outra coisa, a arte
sempre dominou minha alma, acompanhou meu crescimento e se apoderou de mim.
Cresci. Mas sempre estava inventando alguma
“ARTE”. Formei-me em Artes Plásticas na UDESC, na época em que só definíamos a
especialização depois de cursar dois anos básicos de Educação Artística. Foi
uma formação bastante interessante, pois passamos pela música, desenho,
geometria e teatro, disciplinas que já trazia interesse de berço. Foi
fundamental para mim, como artista e como pessoa, esta experiência. Fiz amigos
para a vida inteira. Aprendi que arte não se ensina. E aprendi a reconhecer as
inquietações e o prazer desmedido que o “fazer” arte pode proporcionar ao
artista.
Formei-me. Casei-me. Resolvi estudar
novamente. Cursei e me graduei em Letras pela UFSC. Estava em situação
confortável e acolhedora. A literatura, a história da arte, o estudo profundo
da língua-mãe me envolveram de tal forma apaixonante que quase sucumbi aos seus
encantos e, por conta de um filho que estava gerando, não me entreguei à vida
acadêmica. Tive que fazer uma opção. Escolhi ser mãe e esposa.
O hiato produtivo. Não me arrependo de nenhuma escolha na minha vida.
Elas foram as responsáveis de eu ser a mulher que me tornei. São minha
identidade. Estão tatuadas nas minhas obras. Durante muitos anos me dediquei a
minha família. Ela é minha maior e
melhor obra. Eu deixei em cada um dos meus filhos o gosto e o fascínio pelas
artes, assim como meus pais fizeram comigo.
Um dia a arte voltou com força na minha vida.
E encontrou uma mulher madura, pronta para recebê-la e se dedicar a ela com
todo empenho. Tornei-me uma artista tardia, mas intensa. Não me classifico como
uma artista de estilo próprio, único. Meus trabalhos não seguem uma linha
contínua, ascendente. Procuro incessantemente por uma identidade artística e
encontro mil portas e janelas abertas, e preciso entrar ou sair por elas, é
assim que eu sou: experimentadora. Meus trabalhos são cada qual um indivíduo
com suas particularidades e diferenças. Na verdade eles são o retrato dos meus
devaneios. E como todo conteúdo onírico, minhas obras seguem direções caóticas.
Não, não tenho fases, sou múltipla!
Por que o Barro? Eu poderia ter sido pintora
ou desenhista. Talvez tivesse sido mais fácil profissionalmente. Mas o papel do
meu caderno era muito limitado, chapado. Eu precisava ver todos os lados das
coisas. Minha curiosidade e desejo iam além de uma única dimensão. E mais, eu
precisava sentir a matéria tomando corpo e vida. Nada mais primitivo, mais
próximo, que o Barro. O barro é a natureza primária. O barro é o carbono. É o
ser. O barro é um pouco do homem, é vida que toma forma. É personagem e personalidade.
É múltiplo. O barro é um pouco eu mesma. Por isto, esta identificação tão
grande, tão singela e tão cúmplice. Nosso encontro foi amor a primeira vista.
Tudo o
que crio com esta matéria surge de um pedaço de mim. Multifacetada. Num
determinado momento, quero falar da mulher e minhas obras transbordam da
sensualidade e força do feminino. Podem surgir da mulher convencional que sou
por isto são transparentes e realistas, estética e tecnicamente perfeitas,
quase acadêmicas. Por outras, elas podem brotar da minha personagem
transgressora, e surgem formas e conceitos provocadores que querem incitar o
pensamento e a reação do expectador, gosto de brincar com o limiar do perigo,
do impróprio.
Sempre
tive tendência para a geometria milimétrica das formas, resultado de uma
personalidade perfeccionista e quase obsessiva. Tive que soltar os grilhões da
alma para enveredar pelas formas orgânicas. Foi um esforço e treino exaustivo,
que originou uma seqüência de obras, que considero o melhor que já fiz, até o
momento. Soltar as amarras da mulher perfeita e percorrer a psique da mulher
real, cheia de defeitos, foi um exercício para o crescimento do meu trabalho.
Mesmo assim, a cada dia, a cada obra o entrave persiste, e o resultado desta
luta tem se mostrado produtivo, encantador e absurdamente prazeroso. E isto é
arte para mim. Suor, dor, angústia e prazer. Um ritual sado masoquista. E o
mais surpreendente é que junto a todo este vendaval de emoções, lá no íntimo
ocorre, vez ou outra, questões filosóficas que vêm inquietar meu ser e me
pergunto: Por que e Para que?
Minhas inspirações não são definidas. Revelam-se
na maioria das vezes, espontaneamente. Por outras, acho que já vieram comigo.
Possivelmente fazem parte do meu ser. Outras tantas nascem através de um
insight, proveniente de uma leitura. Livros e histórias são fontes constantes do
meu trabalho. Inegável dizer que a natureza, suas macro e micro formas
estruturais, estão presentes com toda força nos detalhes da minha obra. O olhar
é fundamental para a percepção do mundo e das coisas. Mas todas estas
referências só são possíveis porque são dosadas com amor, dedicação e prazer.
Esta é a mulher/mãe/esposa que nasceu artista. Minha trajetória é curta,
não sou artista de produção intensa, mas trago comigo grandes conquistas neste
meu pequeno caminho. Consegui entrar em salões de grande expressão no mundo da
cerâmica e tive a grata satisfação de receber meu primeiro premio em 2010. E
continuo produzindo. Talvez para tentar encontrar respostas para os meus
próprios questionamentos. Talvez para conhecer ou reconhecer as várias mulheres
que me habitam. Ou talvez para cumprir um caminho, um estigma, um capricho ou
necessidade de uma energia transcendental não manifesta.
Texto da artista Sara
Ramos
Muito especial o texto do Fernando Lindote! Parece que ele sente o que vem da alma do artista
ResponderExcluirLindo o texto autobiográfico desta minha grande amiga. bjs e sucesso!
ResponderExcluirQue maravilhoso!
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